A primeira vez que vi Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, já tinha visto uma parte substancial da obra de Jean-Luc Godard até à década de ’80. Ou seja, já me foi um filme tardio no conjunto de filmes de JLG. E a verdade é que nem sequer foi um filme que me tivesse impressionado por aí além, não me marcou muito, não se insinuou como mais uma das obras-primas de um dos autores mais fundamentais da História do Cinema. Mesmo tendo em conta a globalidade da obra do realizador, mesmo tendo em conta os seus trabalhos mais recentes que, tantas vezes, têm sido tão mal recebidos, Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela parecia-me uma bizarria cinematográfica que não conseguia catalogar, definir e, em certa medida, explicar. Que filme era aquele? Ou melhor, que linguagem era aquela? E é aqui, na linguagem cinematográfica que JLG andava à procura, que acabei por recuperar o filme e vê-lo com outros olhos.

Quando o voltei a rever, numa altura em que já tinha um certo distanciamento em relação ao universo cinematográfico de JLG, numa altura em que o meu conhecimento, gosto e paixões estava estilhaçado em mil e um pedaços à volta do globo e em que as obras dele estavam em banho-maria – a nouvelle vague estava localizada lá atrás no tempo e a sua influência um pouco esbatida com o advento das novas imagens, como a MTV, por exemplo, ou os novos cinemas saídos da libertação do vídeo –, foi como se, de repente, tivesse descoberto um filme perdido do realizador. Foi uma espécie de quase-revelação. Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela transformou-se, à posteriori, num dos filmes principais para redescobrir o cinema de JLG e, acima de tudo, a sua linguagem ou, a procura que tem exercido na busca de uma nova linguagem.

O que me aparece, de rompante? Uma ode a Paris. Elle, do título, é a cidade de Paris. A primeira ideia é essa, Paris. Mas logo depois, quase de imediato, surge Juliette. Juliette é também a outra leitura de Elle. Paris e Juliette. Uma justifica a outra. Uma só existe pela outra. Uma sobrevive na outra. As duas cruzam-se, mas nunca se confundem, nunca se misturam. Mesmo que as duas, a cidade e a personagem, existam em mutação constante. Uma precisa da outra, mesmo que a maltrate, ou a ignore.

Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela começa como um ode desapaixonada a Paris – nunca são mostrados os bilhetes-postais da cidade-luz. Aqui não há Torre Eiffel, o Louvre ou os Champs-Élysées. Aqui, nesta Paris moderna que JLG nos mostra, há prédios, prédios, torres, apartamentos, escritórios, lojas, luxo, lixo, pontes, viadutos, subúrbios, plástico, cartazes, publicidade, propaganda, moda, barulho, muito barulho, a cidade é um estaleiro em constante mutação. A cidade não pára. A cidade que não pára, não dorme, está sempre a crescer, numa expansão eterna, como o universo, aumentando a sua capacidade de albergar pessoas que vai consumir para manter essa sua capacidade regeneradora da engorda. Paris, cidade capitalista, cidade consumidora, devoradora dos seus filhos que têm de se prostituírem para continuarem a dar de mamar à sua cidade.

É aqui que se confundem as estórias de Paris e Juliette. A personagem-humana não tem outra forma de sobreviver à voragem da personagem-cidade senão entrar na roda capitalista autofágica: Juliette prostitui-se para sobreviver em Paris que precisa dessa engrenagem que se mantém sempre em funcionamento para crescer e garantir as necessidades de Juliette que tem de se prostituir para continuar por ali. Necessidades fúteis. Luxo. Moda.

Entretanto, ao pensar neste Paris dos anos ’60 do século passado, não se pode deixar de pensar na Lisboa de hoje. Como sobreviver à ganância que está a tomar conta da capital portuguesa? Se calhar da mesma forma que Juliette sobrevive na Paris de então.

Ao mesmo tempo, esta Paris de JLG, esta Paris que devora Juliette, é a mesma Paris que ignora a guerra do Vietname. A guerra passa muito suavemente pelo filme, quer dizer, JLG não a esquece, mas o filme parece ignorá-la. JLG não está a esquecer-se de um acontecimento que lhe é caro, a ele e à sua geração. No mesmo ano da produção de Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, 1967, JLG ainda realizaria O Maoista e Longe do Vietname, um filme colectivo. Não, JLG não se está a esquecer da história, até porque a América, essa América que está em guerra, essa está sempre presente no filme, mas JLG está é a caracterizar a sociedade parisiense dessa época. O que é que importa a uma parte significativa da sociedade? A guerra longínqua que se passa lá nos confins da Ásia ou o dia-a-dia devorador do qual somos devedores? Ao quase-ignorar a guerra do Vietname ou a guerra na Argélia (que tinha terminado 5 anos antes, mas ainda muito presente na vida dos franceses), JLG acentua o grau político da sua visão do mundo parisiense da altura – a alienação da sociedade de consumo. Por vezes a ausência pode ser mais agressiva que a presença.

Mas este é o conteúdo. E a forma?

Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela é apresentado como se fosse um documentário-ficcionado. Um documentário sobre arquitectura, sociológico, etnográfico. Um documentário sobre uma Paris diferente, não a Paris cidade-luz, cidade dos amantes, mas a Paris multicultural, agressiva e consumidora. Um documentário sobre uma mulher, mãe de família, a tentar não ser triturada pela cidade que habita.

Este é um filme-fragmento em forma documental onde as personagens interagem com a câmara e dirigem-se, bastantes vezes, ao espectador.

JLG rasga a continuidade narrativa. Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela está fragmentado em pequenas bolhas, aparentemente isoladas, mas que têm de ser lidas em conjunto. É aqui que o autor ensaia, pela primeira vez, uma meta-linguagem

– “O que é a linguagem? A linguagem é a casa onde o homem habita.” – mesmo que ainda com recurso a elementos já utilizados em filmes anteriores, como as cartelas com palavras ou frases como capítulos, ou sub-capítulos, de uma estória, ou justificativas para pequenas estórias fragmentadas que depois se vão interligar. A voz-off, sussurrada, marginal, em perigo, a querer passar despercebida, como se nos contasse um segredo, um segredo perigoso e mortal. A aparente superficialidade na construção das personagens. Que importa de onde vêm ou para onde vão, as personagens estão – é essa a condição. As imagens mostram-nos o que é relevante sabermos para entendermos as personagens, os locais, a vida – há um escritório de uma agência de viagens que promete a felicidade, onde são alugados quartos aos amantes, e onde funciona uma espécie de creche-armazém de crianças onde as mães largam as suas crias enquanto trabalham.

Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela inaugurou um JLG que se veio a perpetuar no tempo. Desde 1967 que se lançou na procura de uma linguagem que encontrou o seu zénite em 2014, com o Adeus à Linguagem, e neste último Le Livre d’Image, de 2018, onde, mais uma vez, JLG se regenera e tenta procurar as respostas nas palavras e nas imagens.